sexta-feira, janeiro 11, 2008

Salazar, Agora na hora da sua morte (com entrevista a João Paulo Cotrim)

Como actualmente a página da "Rua de Baixo" não está a funcionar tenho colocado aqui os textos que lá escrevi sobre BD e a que fazia referência na barra lateral, para poderem estar novamente disponíveis ao acesso de qualquer um enquanto a RDB não regressar efectivamente.
Este texto e entrevista foram publicados juntos no mesmo ficheiro e por isso decidi manter a estrutura inicial.
Volto a salientar que todos estes textos foram escritos por mim mas publicados originalmente na RDB e deixo um especial agradecimento a João Paulo Cotrim por ter aceitado responder às minhas perguntas.
Penso que em breve poderei anunciar mais notícias sobre a situação actual da RDB, fica agora apenas o aviso de que o regresso está marcado para este ano.
Sem mais demoras aqui ficam os textos:


Salazar, Agora na hora da sua morte

A história de António de Oliveira Salazar contada por João Paulo Cotrim e Miguel Rocha de uma forma melancólica e cinzenta que apenas é possível em banda desenhada.
Os autores tentam afastar Salazar do estatuto de mito que adquiriu e propõe apresentar-nos o homem. Um homem com uma visão de um país e como este se foi perdendo no caminho para a atingir.
J.P. Cotrim faz um trabalho excelente nesta biografia, conseguindo em cerca de 200 páginas contar a história do ditador, desde a sua infância até à sua queda no poder. Assistimos assim a uma viagem guiada sobre os momentos mais marcantes da vida de Salazar e sobre os momentos “chave” na história de Portugal, relacionados ao seu regime.
A nível gráfico é uma obra sublime, Miguel Rocha dispensa apresentações e mais uma vez volta-nos a surpreender, neste trabalho algo futurista, no sentido em que todo o desenho foi feito a computador, utilizando fotografias e recortes de jornais.
O livro começa por criar um retrato da sua infância em Santa Comba Dão, terra onde nasceu. Em criança é desenhado com um rosto velho em uma alusão ao “menino velho”, pois Salazar nasceu velho, viveu velho e morreu velho.
Dizem que a cadeira do poder é um local solitário e é assim que Salazar é retratado ao longo do livro, um homem sozinho. Apesar de nunca ter casado, podemos conhecer algumas das mulheres que tiveram maior impacto na sua vida, nomeadamente Christine Garnier, que escreveu “As Minhas Férias Com Salazar” em 1952. Nessas férias existiram rumores de uma possível relação entre os dois, como é salientado no livro quando ela pergunta: “Dizem que durmo com ele?”.
É um livro carregado de pormenores que se misturam entre a letra e o desenho, o que se por um lado contribui para o tornar uma obra ainda mais aliciante, por outro exige um certo conhecimento da história de Portugal durante o Estado Novo, para uma maior compreensão.
Desde a forma como é retratada a cena em que Salazar consegue a neutralidade do País na Segunda Guerra Mundial, passando pela expulsão do coreógrafo Maurice Béjart durante a actuação da sua peça “Ballets du XX.e Siècl”, ou da célebre frase “Obviamente demito-o” de Humberto Delgado quando lhe perguntaram o que faria a Salazar se vencesse as eleições, os pormenores são imensos e alguns talvez permaneçam para sempre por descobrir.
J.P. Cotrim é jornalista free-lancer e colaborador do Expresso. Dirigiu a Bedeca de Lisboa entre 1996 e 2002 e foi director do salão Lisboa de ilustração e banda desenhada durante as suas quatro primeiras edições. Já fez um pouco de tudo em escrita, sendo o autor de vários livros como, “Stuart – a rua e o riso”, “Tango” ou “Travessa do calado”. Escreveu guiões para filmes de animação, “Algo importante” e “Um degrau pode ser um mundo”. Escreveu também livros infantis como “S. Vicente e os corvos”, “Canção da onda, da rocha e da nuvem” e “Viagem no branco”. Em banda desenhada já trabalhou com Pedro nora em “Woody Allen”, com Pedro burgos em “À esquina”, e “Nós somos os Mouros” em uma colaboração de vários autores.
Miguel Rocha juntamente com Jorge Andrade escreveu as peças “Hard” e “Philatelie”. Em banda desenhada trabalhou em “O tempo das papoilas”, “Os touros de tartessos”, “A vida numa colher”, “Março”, “As pombinhas do Sr. Leitão”, “Dédalo” e “Bord d´água”. Foi também o autor do cartaz oficial do Euro: 2004.
“Salazar agora na hora da sua morte”, foi o grande vencedor do 17º festival internacional de banda desenhada da Amadora (FIBDA), tendo arrecadado os prémios de melhor álbum, melhor argumento, melhor desenho e o prémio do público jovem. Sem dúvida uma obra a descobrir.


Entrevista a João Paulo Cotrim

Rua de Baixo: Como e quando é que surgiu a ideia de retratar em banda desenhada a história de António de Oliveira Salazar? E porquê ele?

João Paulo Cotrim: A ideia nasceu de um convite da editora, a Parceria A.M. Pereira, a qual possui uma longa tradição de edições em torno de Salazar, que continuou de um modo mais crítico depois do 25 de Abril. Qualquer abordagem criativa do ditador não estava nem nos meus planos, nem nos do Miguel Rocha, mas ao reflectirmos um pouco percebemos, não sem perturbação, que o fantasma de Salazar estava ainda demasiado presente na vida de alguém que tinha 10 anos por alturas do 25 de Abril de 1974.

RDB: O livro foi “acusado” de ter humanizado demasiado o ditador? Qual a sua opinião sobre esta frase?

JPC: É uma estranha acusação, tem em conta que é de um homem que se trata e não de um mito, de um fantasma ou de um extra-terrestre. Enquanto não o retirarmos do pedestal em que as várias propagandas, de direita como de esquerda, o têm o colocado, não nos livraremos nunca das suas mais perigosas ideias e heranças.
A nossa única auto-condição foi respeitá-lo enquanto personagem, uma vez que se trata de romance desenhado, assumindo as nossas visões, mas tentando escapar dos preconceitos. Interessava-nos, para o melhor e para o pior, entrar naquela cabeça.

RDB: Durante a infância ele é retratado como o “menino velho”, porquê esta decisão? Terá Salazar nascido e vivido sempre “velho”?

JPC: Algumas descrições de amigos de infância descrevem-no assim, menino fechado em si, tímido e super-protegido. Esta é uma das grandes potencialidades da banda desenhada: sem afectar grandemente a personagem ou a narrativa, criar traços significativos visualmente, pequenos ícones.


RDB: É notório que houve uma pesquisa bibliográfica exaustiva, não só na narrativa, mas também na arte com imagens desse tempo. Poderia descrever um pouco como foi o processo de criação de esta obra?

JPC: Foi método muito conversado, primeiro em torno das nossas imagens de Salazar, do que conhecíamos do período, etc.. Em seguida, e à medida que íamos investigando, para contar das descobertas (mais gráficas e visuais, as do Miguel). Finalmente, a estrutura foi-se-nos impondo. Aprofundei-a depois que, uma vez mais conversei com Miguel, até chegar à divisão por capítulos que o Miguel, pelo seu lado, tratou de planificar com muito detalhe. Só depois o texto final nasceu. Foi, portanto, um caso muito raro de entendimento entre dois criadores.


RDB: Vencedor de quatro prémios no FIBDA, o de melhor álbum, melhor argumento, melhor desenho e prémio do público jovem. O que pensa de todo este “furor” existente à volta deste projecto? Pessoalmente acho que todos os elogios são merecidos e é bom ver tanto contentamento em redor de um projecto nacional de Banda desenhada, não é comum.
No entanto considera que a escolha de Salazar ajudou no sucesso do livro?

JPC: Para além das qualidades e defeitos da obra, que não me cabe aqui avaliar, mas que me parece ainda assim algo difícil, creio que há certamente um efeito surpresa no tema e na figura. Infelizmente, é comum o estereótipo de que certos temas ou figuras não podem ser tratados pela banda desenhada.

RDB: Existem muitas referências no livro que podem passar despercebidas aos menos familiarizados com a biografia de Salazar, nomeadamente cenas de Humberto Delgado, ou Maurice Béjart. Aconselha algum tipo de leitura em particular, antes de ler este livro?

JPC: Antes, nenhuma a não ser os romances de José Cardoso Pires, José Rodrigues Miguéis, Aquilino Ribeiro, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, Manuel da Fonseca ou a poesia de Alexandre O’Neill, entre outros.
Depois, há muita informação e de leitura fácil em «António de Oliveira Salazar», de Joaquim Vieira, na colecção Fotobiografias do Século XX.

RDB: Recentemente Salazar foi o grande vencedor do programa “Os grandes Portugueses”. Qual a sua opinião em relação a esta vitória polémica?

JPC: Resulta exactamente de tratarmos ainda Salazar como um mito, de termos receio de nos confrontarmos com o modo como ele nos leu enquanto povo e nação, da excessiva presença de vírus salazarentos como o paternalismo do estado, a ausência de sociedade civil ou o horror à política.

RDB: Será que Salazar é fruto do sistema ou o seu criador?

JPC: Por muito que nos custe, cada sociedade tem os governantes que merece (ou permite). Salazar é fruto daquele foi o seu tempo e a nação nesse tempo. Criou depois, como uma obra-prima autista, um sistema que queria perfeito. Foi estéril, o sistema, que nos atrasou décadas, e a figura, que ainda nos atormenta como fantasma.


RDB: Quais são as suas maiores influências em banda desenhada?

JPC: De Bordalo Pinheiro a Muñoz e Sampaio, de George Herriman a Breccia, de Seth a David B, de Art Spiegelman a Franquin, de Hernández Cava a Goscinny são muitas e variadas.


RDB: Existem projectos para o futuro?

JPC: Sim, no imediato estou a trabalhar noutro romance desenhado com o Pedro Nora, desta vez com uma história em torno de anarquistas.

RDB: Para terminar pergunto, quais são as “flores que devem ser regadas”?

JPC: Só ao leitor cabe decidir…



Texto e entrevista publicados originalmente em Rua de Baixo (Abril de 2007) por José Gabriel Martins (Loot)

2 comentários:

Susana Fonseca disse...

Muito bom. Cheguei a fazer um post sobre o livro na época em que o li. Muita qualidade!

Loot disse...

Eu lembro-me desse post e sim é muito bom ;)

bj