Jules David
No passado mencionei que me tinha iniciado nesta épica aventura que é a história de "Dom Quixote". Após terminar o primeiro livro optei por fazer uma pausa para colocar outras leituras em dia. Por isso enquanto não volto à carga, porque não fazer uma espécie de ponto da situação? Até porque já me avisaram que o segundo livro é bastante diferente do primeiro.
Este primeiro volume foi publicado em 1605 com o título de "O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha". A sua importância na História da literatura é amplamente conhecida, sendo considerado não só a obra-prima de Cervantes como a obra mais importante e influente da literatura espanhola. Já foi também votado como o melhor livro de sempre por um grupo de 100 escritores originários de 54 países diferentes em 2002 [1].
Longe de ser um especialista em literatura, tenho a plena consciência de que não há que possa falar sobre "Dom Quixote" que outros não o tenham feito já e melhor. Por isso mesmo vou tentar começar por referir algo que talvez contenha alguma originalidade em relação às inúmeras teses sobre o livro de Cervantes.
Ao olhar para a personagem de Dom Quixote estou convicto que podemos estar perante a primeira personagem geek da literatura. Entenda-se por geek qualquer pessoa que apresenta um conhecimento massivo - obsessivo até - sobre um determinado tema. Segundo esta definição é perfeitamente claro que podemos ter geeks muito diferentes entre si, existem os de informática, os de cinema, banda desenhada, etc. Claro que um geek não está limitado a um tema apenas. Em termos sociais costumam empregar vocabulário daquilo que gostam nas conversas, por exemplo, um geek de cinema irá citar frases de filmes ou comparar situações da realidade a filmes em particular.
Ora Dom Quixote é um leitor obsessivo de romances de cavalaria. Possui uma biblioteca invejável e passa noite e dia a lê-los. A razão citada logo no início pelo narrador para a personagem ter perdido o juízo, prende-se precisamente com o facto de este ter lido demasiados livros de cavalaria, a um ritmo compulsivo. Ao longo das suas aventuras são várias as vezes que o assistimos a citar os ditos romances e a comparar situações reais com as ocorridas nos livros que leu. Neste caso em particular Dom Quixote ainda acredita que as aventuras que está a viver são tão reais como as que leu. Por tudo isto que descrevi, acho que Dom Quixote é de facto um geek de romances de cavalaria. Se é o primeiro a surgir em literatura já não posso confirmar, mas começar a frase assim chama sempre mais a atenção.
Em suma, enfrascou-se com tanto em sua leitura, que se lhe iam as
noites lendo de uma assentada, e os dias de sol a sol; e assim, de pouco
dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro de maneira que acabou por
perder o juízo.
Gustave Doré
Uma imagem desta obra que está bem presente na cultura popular é a da célebre batalha de Dom Quixote contra os moínhos - os quais ele pensava tratarem-se de gigantes. A imagem deste louco (mal) vestido de cavaleiro a investir contra paredes em vão, apesar de não nos dar contextualização nenhuma da personagem, não deixa de ser uma imagem certeira. É curioso que esta "batalha" seja tão lembrada na realidade é um episódio curtíssimo em toda a história, mas o seu impacto visual provou-se gigantesco. Se a imagem que tinha criado de Dom Quixote estava mais ou menos correcta, o mesmo não posso dizer da do seu escudeiro, Sancho Pança. Pensava mesmo que Sancho o seguia para tomar conta dele, para o proteger de si próprio, tendo perfeita consciência da loucura de seu amo - tal não podia estar mais incorrecto. Apesar de Pança não sofrer dos delírios do cavaleiro, ele crê no que Dom Quixote lhe conta e aceita ser seu escudeiro com o intuito de ganhar uma prometida ínsula. No fundo Sancho segue o seu amo, não por caridade, mas por ambição. Ele acredita que terá a riqueza que deseja, graças aos grandes feitos que esperam Dom Quixote, o homem que será conhecido por toda a Espanha como o "Cavaleiro da Triste Figura".
É importante referir também que Quixote não é o nome de baptismo da personagem e que foi escolhido pelo próprio, colocando em seguida o nome da sua terra (Mancha), como era tradição entre cavaleiros. Na realidade o sobrenome do protagonista era Quijada. A personagem acabaria por aplicar o mesmo raciocínio à sua amada também, Aldonza Lorenzo, baptizando-a de Dulcineia del Toboso. Não há cavaleiro que exista nos romances que não empregue a sua alma e coração nas mãos da donzela amada. Claro que neste caso sabe lá Dulcineia o que Dom Quixote anda a fazer e quais as suas intenções em relação a ela.
Esta primeira parte é considerada maneirista (ao contrário da segunda), um estilo que se começou a desenvolver no século XVI e que na literatura veio acrescentar novas possibilidades na escrita em relação à literatura clássica. Neste estilo as personagens não tinham de ser ou boas ou más, já incorporavam diferentes aspectos dentro delas, não tendo de estar coladas a um estereótipo específico. A estrutura também deixa de ser formal e rígida, há vários capítulos em "Dom Quixote" que não se focam na dupla de protagonistas. Algo que também é muito característico do maneirismo é o facto do autor usar a fantasia como escape à realidade, entre outros sentimentos associados a este estilo. [2]
Salvador Dali
É referido muitas vezes que ninguém experiência este romance de Cervantes exactamente da mesma forma. De facto o tradutor Edith Grossman até chegou a referir no passado que teve duas experiências completamente distintas quando o leu, a sua interpretação foi mudando com a idade. Sobre isto não me posso alongar além da primeira parte, que das duas é a que tem um tom de paródia à superfície. A segunda é sempre referenciada como sendo mais filosófica e séria. Aliás esta primeira parte quando foi originalmente publicada foi considerada pelos críticos como uma comédia, mas apesar de conter situações caricatas e humorísticas - não deixa de ser uma paródia aos romances de cavalaria - percebemos que a história de Dom Quixote pretende muito mais do que apenas entreter.
Eventualmente esse reconhecimento viria no futuro. Contudo, no século XIX, apesar de a crítica social e religiosa em "Dom Quixote" ser bem reconhecida, muitos mantinham a dúvida sobre qual a posição do autor em relação aos temas - de que lado estaria ele? Apesar de actualmente o livro ser visto como uma severa crítica à Inquisição e à Nobreza, ainda hoje críticos têm opiniões distintas sobre o livro em relação a outros assuntos. Parece que a discussão em torno de "Dom Quixote" nunca se esgotará. Talvez Harold Bloom tenha razão quando diz: "What is the true object of Don Quixote's quest? I find that unanswerable. What are Hamlet's authentic motives? We are not permitted to know" [3].
Cervantes conseguiu ao criar Dom Quixote e Sancho Pança, escrever duas das personagens mais maravilhosas da História. Não é por acaso que tantos autores demonstraram o seu apreço pela história destes dois, sendo influenciados por ela (Mark Twain, Alexandre Dumas, Herman Melville, etc) ou dedicando-se a estudá-la (Nabokov). Sem falar de outras artes, onde "Dom Quixote" deixou também a sua marca, escolhi imagens de determinados pintores para ilustrar este texto por causa disso.
Os dois protagonistas são muito distintos e representam valores diferentes. Dom Quixote é alto, magro, nobre e vive num mundo de fantasia, enquanto Pança é baixo, gordo, iletrado e do povo, mas aquele cujos pés estão assentes na realidade ainda que muitas vezes se deixe contagiar pelas loucuras do seu amo. Pança, nas palavras do autor é "homem de bem, mas de pouco sal na moleirinha" [4]. Quanto a Dom Quixote aspira aos nobres valores da Cavalaria, apesar dos seus feitos muitas vezes serem ridicularizados, a sua força de vontade e valor enquanto Homem é inspiradora. Ao falar de personagens deste livro não me posso esquecer de Rocinante, o fiel cavalo de Dom Quixote. Um equídeo que na realidade está longe de ser o garanhão que o seu amo imagina, mas o que Rocinante não tem em força e rapidez, compensa com a sua paciência e charme.
Picasso
A presença do próprio Cervantes também se faz sentir ao longo do livro. Aqui as notas foram preciosas para perceber em que partes o autor fazia referência a situações que viveu. Falo, por exemplo, da sua menção à batalha de Lepanto contra os Turcos na qual foi ferido em combate - onde perdeu o uso da sua mão esquerda (1571) - e no facto de ter sido capturado em 1575 por corsários onde ficou 5 anos em cativeiro em Argel, juntamente com o seu irmão. Apesar de estes momentos da sua vida serem evocados no livro a partir de outras personagens, há momentos em que as personagens ao se referirem a determinadas pessoas, chegam a mencionar o próprio Cervantes.
Especula-se também que a história de "Dom Quixote" tenha começado a ser escrita quando o autor foi preso em Sevilha em 1597 - falcatruas nos impostos. Como já deu para ter uma ideia, a vida do autor foi pautada por tragédia, a qual influenciou fortemente a escrita desta obra.
Como referi acima, há várias histórias contadas por outras personagens que se afastam da narrativa dos dois protagonistas. Uma delas é precisamente a história que foca os acontecimentos da guerra contra os Turcos mencionada acima. De entre estas todas, gostei particularmente de uma que é encontrada em papéis numa estalagem onde se encontram Dom Quixote e os seus companheiros. Trata-se de um romance de cavalaria que se debruça sobre a história de dois amigos e a mulher de um deles. É uma verdadeira tragédia grega que foca de forma incrível certos sentimentos humanos, tanto os valorosos como os mesquinhos. Uma lição de vida que, independentemente do tempo e do contexto, será sempre actual.
Júlio Pomar
Antes de terminar quero referenciar a versão que estou a ler, uma com tradução de Miguel Serras Pereira e ilustrações de Júlio Pomar. Esta edição saiu há uns anos com o Jornal Expresso, desconheço se é de fácil acesso para comprar hoje em dia, mas felizmente houve alguém que ma emprestou.
Agora no final deste texto acho que mudei de ideias em relação ao que disse no início. Que se lixe colocar outras leituras em dia vou mas é ler a segunda parte de "O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha" do grande Miguel de Cervantes Saavedra.
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