quinta-feira, janeiro 03, 2013

O Sol Nasce Sempre (Fiesta)


Os loucos anos 20 na cidade das luzes - Paris - foram um período fervoroso em termos culturais e boémios, como tão bem Woody Allen lembrou no seu "Midnight in Paris". Para compreender o fascínio que Gil (Owen Wilson) tinha pela época em questão é essencial conhecer as obras dos respectivos artistas em questão. Dos vários que povoavam as ruas e cafés de Paris, há dois cuja relação entre eles me tem suscitado grande entusiasmo em conhecer, falo da célebre amizade entre F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway.

"O Sol Nasce Sempre" ou "Fiesta" (título com que foi publicado em Londres) trata-se do primeiro romance de Hemingway, que até à data ainda só se tinha aventurado por contos curtos. Foi publicado em 1926, quatro anos depois da obra mais consagrada do seu amigo, "O Grande Gatsby". Em 1954, venceria o prémio Nobel da literatura, uma honra que passou ao lado de Fitzgerald. Os prémios, sejam eles quais forem, irão sempre passar ao lado de alguns dos maiores artistas vivos e tendo em conta que Tolstói, Proust, entre outros, também nunca o venceram, não se pode dizer que Fitzgerald esteja em má companhia, mas já estou a desviar-me em demasia do assunto.

"Fiesta" é um conto sobre a chamada "geração perdida", sobre a qual a primeira grande guerra teve um grave efeito. Hemingway através das suas experiências pessoais e conhecidos, conta-nos a história de cinco amigos expatriados que se encontram em Paris (alguns deles a viver) e que se aventuram até Pamplona em julho para o festival de São Firmino. O protagonista Jake Barnes , por exemplo, tem claras semelhanças com o autor, combateu na grande guerra, é um jornalista a viver em Paris e nutre um forte fascínio pela arte da tourada. Sobre a sua "relação" com a personagem Brett, pensei que poderia ser inspirada na dele com Agnes von Kurowsky, enfermeira que o tratou durante a guerra e por quem se apaixonou, mas não encontrei nada que o corroborasse, apenas que Agnes serviu como base para outras personagens de outras obras do autor.

Podemos dividir esta história em duas grandes partes, a que decorre em Paris - onde toda esta canalha se reúne, acompanhando-os durante o dia-a-dia parisiense - e a que decorre em Espanha, que se divide numa primeira parte mais relaxante - com a pesca como pano de fundo - e numa segunda mais ferverosa, os sete dias de fiesta em são Firmino, onde a tourada é a principal atracção. Jake, o protagonista, é um dos grandes apaixonados desta arte, nutrindo uma genuína atracção e respeito pela mesma, que não passa despercebida pela comunidade de aficcionados do género. É que para os espanhóis, esta paixão, dificilmente pode ser verdadeiramente sentida por outros e o facto de aceitarem Jake - um americano - como um deles, só enaltece a aficíón (paixão) da personagem. Claro que como tudo na vida, o que demora a ser construído, pode ser destronado em meros segundos e mesmo sem o autor o apontar com diálogos é mais do que notório os efeitos que o seu grupo de amigos tiveram na reputação de Jake em São Firmino.

Sempre nutri, e continuo a fazê-lo, um certo fascínio por determinados estilos de vida apelidados de decadentes e pelas suas hedonísticas buscas do prazer, tão bem acentuadas neste livro - começo agora a ver melhor de onde vem todo o meu entusiasmo com "Shame" de Steve McQueen. Não se trata de nenhuma ilusão em relação às mesmas, mas gosto de observar ou até sentir as consequências que determinadas escolhas têm nas nossas relações, gosto da intensidade das paixões e dos vícios, e da tristeza que lhes segue. A cena em que Jake acompanha a sua amada Brett para a deixar nas mãos do toureiro Pedro Romero - a personagem mais (única?) heróica da obra - é de uma intensidade avassaladora e um dos momentos maiores e mais dolorosos de "Fiesta". A personagem Pedro Romero ganha o nome em homenagem a um toureiro do séc. XVIII com o mesmo nome. Existe uma clara distinção na sua apresentação e na do grupo de amigos de Jake. Romero é muito mais genuíno e honrado, do que qualquer um dos seus amigos.

Gostei muito desta viagem, vou sentir saudades de Jake, Brett, Bill, Mike e até de Cohn, que, no fundo, é apenas um ingénuo. Claro que Jake, de todos, foi aquele por quem senti uma maior empatia, trata-se afinal de contas do narrador, daquele cuja mente se liga momentaneamente à nossa e tal como ele também eu sinto que é sempre mais fácil alguém mostrar-se forte de dia do que de noite ou que muitas vezes a base de uma forte amizade entre um homem e uma mulher, está num prévio amor desse mesmo homem, por essa mesma mulher.

O tradutor é um nome muitas vezes esquecidos nos livros, e tem, no entanto, um trabalho deveras desafiador, pois estamos a falar de muito mais do que traduzir palavras, estamos a falar de traduzir uma "voz". Não li "Fiesta" na versão original, por isso afirmar que se trata de uma boa tradução seria redundante. Contudo, quero salientar, não só, que gostei muito de ler esta versão de "Fiesta" mas também que o tradutor Jorge de Sena escreve um belo prefácio e o qual, eu pessoalmente, até teria colocado antes como posfácio.

Penso que "Fiesta" não é considerado o livro mais bem escrito do autor, até o próprio disse que o melhor que seria capaz de escrever foi "O Velho e o Mar" - livro que lhe daria o prémio Pulitzer em 1952. Porém, este é muitas vezes citado como um dos predilectos, pois a sua intensidade é absolutamente contagiante embarcando-nos numa viagem que dificilmente esqueceremos. O estilo de escrita jornalístico e moderno de Hemingway, tornou-se amplamente referenciado, nomeadamente, pelo facto de não expor todos os pormenores da história, deixando determinados aspectos "abaixo da superfície" da história, um estilo que ficou conhecido pela "Teoria do Iceberg" (ou da omissão). O final do livro, em aberto, foi por exemplo um dos momentos mais marcantes em que Hemingway usou esta abordagem. Algo que hoje em dia é relativamente comum, mas que na altura foi um marco.

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