terça-feira, abril 09, 2013

A Peste



Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana.


"A Peste", de Albert Camus, narra a história do povo de Orão (Argélia) quando este é afectado, algures nos anos 40, por uma nova vaga da Peste. O livro foi editado em 1947, dez anos antes do autor ser galardoado com o prémio Nobel da literatura.

Segundo a contracapa o próprio autor agrupou as suas obras em três grandes ciclos temáticos: o do absurdo, o da medida e o da rebelião. Este último onde sugerem que "A Peste" está inserido. Contudo, parece-me ser justo integrar o livro em questão no ciclo do absurdismo também. O Absurdismo é uma corrente filosófica que lida com a busca pelo sentido da vida por parte da humanidade e em como a obtenção da resposta a esta questão está condenada a falhar, o que faz com que a sua procura seja absurda. É importante referir que, segundo o absurdismo, o impossível está no Homem e, por isso, apenas nesse sentido é que tal demanda é apelidada de absurda. A partir da doença da Peste o autor explora como o Homem lida com esta teoria filosófica, o que se torna muito evidente, por exemplo, nas personagens de Tarrou e Rieux.

A história é narrada por um habitante de Orão, alguém que sofreu do mesmo martírio que os seus concidadãos, ou seja, uma testemunha. E é nesse sentido de testemunha que o narrador aborda esta crónica, afastando-se de considerações pessoais e focando-se numa descrição o mais precisa que lhe é possível e imparcial também. Ao final do livro, o narrador em questão revela-se perante nós, apenas no fim, reforçando a necessidade em não o ter feito previamente.

Apesar de o narrador descrever de uma forma geral o comportamento do povo, a história é narrada maioritariamente a partir do ponto de vista de um dos seus cidadãos, o do Doutor Bernard Rieux, um médico que acompanha a invasão da Peste desde o seu início até ao seu final. Outra personagem cujo ponto de vista é focado é o de Jean Tarrou uma personagem misteriosa e bondosa cujos cadernos foram uma das fontes de material para o narrador usar nesta crónica. Tarrou é uma personagem intrigante cujas observações do dia-a-dia, durante a peste, complementam a narrativa fornecendo uma série de pormenores secundários. Como o próprio narrador diz sobre os seus cadernos: "trata-se de uma crónica muito especial, que parece obedecer a uma ideia preconcebida de insignificância".

Ao longo de cinco capítulos Camus descreve as várias fases desta epidemia, começando com os primeiros sintomas - os ratos são os primeiros a morrer - e continuando com o seu crescimento e constante apoderamento da cidade, culminando no seu eventual desmoronamento. Durante os primeiros infectados, quando a estatística assume um determinado valor, a prefeitura não vê outra acção que não o exílio de Orão do resto do mundo - entre outras medidas comuns em situações de quarentena. O sentimento de separação do mundo em geral e da pessoa amada em particular é muito focado em "A Peste" nomeadamente no médico Rieux, que se encontra separado da esposa, e no jornalista Rambert, que apenas estava de passagem na cidade. Rambert começa por se comportar como o emigrante que é (está separado da amada e da pátria também), mas ao longo desta luta temível acaba por se tornar tanto cidadão de Orão como Rieux e os outros. O tema do exílio é também explorado a um nível mais metafísico, como a procura por uma  felicidade ou paz - que Tarrou personifica e cuja definição é de certa forma uma incógnita.

A determinada altura a situação de Orão chega a estados verdadeiramente aterradores, ao ponto de colocar em dúvida se o mal que é a peste algum dia irá desaparecer. Perante isto alguns poderão resignar-se, aceitar este fado, esta tragédia. Mas há aqueles, como Rieux, Tarrou, Rambert e também Grant, que não atiram a toalha ao chão, que se recusam a desistir de combater, mesmo que estejam todos condenados. Mesmo que a derrota seja iminente, é preciso continuar a lutar e recusar a aceitação de um mundo comandado pela doença. Curiosamente este mal que ataca sem dó nem piedade, que ataca qualquer um e a qualquer momento, acaba por não ser capaz de tornar todos os homens iguais como se poderia supor- uma vez que rico ou pobre ninguém lhe escapa - porém, tal feito conseguiu-o melhor a alegria.

A partir do padre Paneloux, o tema da religião é também abordado. Numa situação apocalíptica como esta é mais do que natural que as pessoas se voltem para a fé, na esperança de uma salvação divina. Segundo Paneloux, a peste é um desejo de Deus, como tudo na vida, um que é preciso aceitar e cujo desígnio tem um propósito. O autor usa esta personagem para colocar o dedo na ferida em algumas questões religiosas. Uma das coisas que sempre foi difícil aceitar para o Homem na religião, foi o sofrimento dos inocentes, das crianças. Nesse registo Camus coloca Paneloux frente a frente com a morte de um pequeno rapaz, evento após o qual é notório um abalo na fé da personagem, tal como se viria a provar no tom do seu segundo sermão.

A descrição da cidade de Orão é sempre feita com especial atenção aos pormenores, atente-se por exemplo no simples facto de a cidade estar escondida do mar, afastada dessas águas que simbolizam a vida., uma simbologia que, eventualmente, assume um sentido literal com a chegada da peste. Por falar em água e vida, aquela curto momento de amizade partilhado entre Rieux e Tarrou, na praia, é um daqueles momentos que vale um livro.

Muito resumidamente esta poderia ter sido a minha observação de "A Peste" contudo tive a sorte de ler na contracapa que esta história tem um duplo sentido, pois além do mencionado, é também uma alegoria para a ocupação alemã da França entre 1940 e 1944 durante a segunda guerra. Sabendo isto de antemão é impossível não olhar para a história com outra leitura também, nem que fosse pelo poder da indução. O exílio, seja ele derivado da doença ou da guerra, resulta em situações comuns: os mantimentos são escassos, a separação dos entes queridos mantém-se, bem como a exibição dos mesmos filmes e das mesmas peças de teatro. Também a peste que entra em casa das pessoas trazendo morte e separação, pode simbolizar a terrífica Gestapo.

Em relação às personagens, os já mencionados Rieux, Tarrou e Rambert, são claramente os lutadores, a resistência da cidade. Já o padre Paneloux, que culpava a cidade pela peste, simboliza aqueles que culparam a França pela invasão e que consideravam que era na submissão que se encontrava a única resposta. Uma das personagens cujo propósito ganha um brilho especial é Cottard, que aqui personifica claramente o traidor, aquele que vive bem enquanto os seus concidadãos sofrem os piores tormentos. Gosto particularmente da descrição de Cottard que não cai em julgamentos fáceis, talvez por essa descrição vir maioritariamente de Tarrou, um homem cuja empatia pelo próximo é de uma ternura inspiradora.

6 comentários:

Jubylee disse...

Já li este livro há algum tempo. Já me esqueci im pouco de alguns pormenores da história mas ficou um dos meus favoritos a que hei-de voltar. Foi o primeiro que li de camus e entretanto já ali tenho mais dois na calha. Mas só depois do guerra e paz. Muito boa análise! Desconhecia o paralelo com a segunda guerra.

Jubylee disse...

Já li este livro há algum tempo. Já me esqueci im pouco de alguns pormenores da história mas ficou um dos meus favoritos a que hei-de voltar. Foi o primeiro que li de camus e entretanto já ali tenho mais dois na calha. Mas só depois do guerra e paz. Muito boa análise! Desconhecia o paralelo com a segunda guerra.

Loot disse...

Também foi o primeiro que li do Camus, comprei-o juntamente com o "Cartas a um amigo alemão". Adorei, já devia ter lido Camus mais cedo, achei "A Peste" fascinante e inspirador :)

Como sabia de antemão do paralelo com a segunda guerra já li com essa atenção, depois fui pesquisar um pouco sobre isso, uma pessoa perde-se a ler estas coisas, é fantástico.

E esse "Guerra e Paz"? que tal? O que me lembra, então e o "A Momentary Lapse of Reason"?

jubylee disse...

O guerra e paz está a ir de vento em poupa. Já estou no último volume e aquilo está muito entusiasmantr. Quando o comecei a ler não pensei que fosse ficar assim tão empolgante. Estou a gostar bastante :)
Quanto ao blogue agora não posso actualizar muito porque estou sem computador :'(...ah! É verdade, mudei o endereço. Agora tem o nome do blogue. Não sei se viste o post a avisar.

Loot disse...

Não vi não, então era por isso, pensei que tinhas fechado portas.

Sobre o livro lembraste-me uma coisa. Acho que o li algures, que um certo General Russo aconselhava a sua leitura às tropas, pois apesar de discordar da visão do autor (na parte de ele priveligiar o estado emocional das tropas ao planeamento), considerava que tinha as melhores descrições do que é uma batalha.

jubylee disse...

Nunca estive numa batalha mas também adorei as descrições dele. É tão minucioso mas nada aborrecido :)