O primeiro livro que me aventurei a falar aqui no blog foi
“Animal Farm” de George Orwell. Foi também o primeiro livro (prosa)
que experimentei ler em inglês. Trata-se de um livro especial por uma data de
particularidades pessoais, mas acima de tudo porque é uma obra fascinante e uma
lição de vida também.
Segue-se a leitura de “1984” um livro cuja importância a
nível humano é tão ou maior que a nível literário. O livro de Orwell contém uma
mensagem tão forte e tão educativa que devia ser uma leitura obrigatória para
todos nós. A maior prova de que marcou a História é a de que hoje em dia todos
– mesmo quem não leu – o conhecem, o seu impacto foi tão grande que ainda hoje
determinadas nomenclaturas do livro continuam a ser usadas, veja-se o caso do
termo “Big Brother”. É também uma obra
muito influente, onde rapidamente nos lembramos de “V For Vendetta” na banda
desenhada, de “They Live” no cinema ou dos Rage Against The Machine na música
(atente-se na letra de “Testify”).
A narrativa tem início com a chegada de Winston – o
protagonista - a casa. Acompanhamo-lo enquanto sobe as escadas e passa pelos
posters do líder – quase omnipresente - Big Brother. Ao entrar em casa Winston
encosta-se imediatamente à janela de costas para uma espécie de televisão.
Winston está de costas para a televisão porque ao contrário das nossas (quero
crer) têm tanto a capacidade de emitir imagem como de a receber. Ele não pode
manter as costas voltadas eternamente, seria um acto suspeito, porém, nem que
seja por um minuto apenas, Winston consegue observar o mundo pela sua janela sem ter de se preocupar com os
contornos que a sua face assume, deixando cair momentaneamente a sua "máscara".
War is peace.
Freedom is slavery.
Ignorance is strength
É um início sublime pois todos os pormenores das acções de
Winston rapidamente nos situam na acção da história. Estamos em Airstrip One
uma cidade que em tempos passados pertenceria a Inglaterra, mas que hoje faz
parte dos domínios de Oceania uma das três grandes potências que dominam o
mundo e que se encontram em permanente estado de guerra. O cenário é o de uma
das distopias mais assustadoras que li, onde o ataque à liberdade humana é
tanto físico, como mental.
Em “Animal Farm” o autor retratou a formação de uma
sociedade e o seu posterior desenvolvimento numa ditadura. Fê-lo de forma
alegórica usando os animais de uma quinta para representar as diferentes
classes sociais. Desta vez em “1984” o regime totalitário já está implementado
quando começamos a leitura, aqui o importante não é debruçarmos-mos na criação
de uma ditadura, mas antes na sua manutenção no poder, indefinidamente – o
objectivo do partido.
If you want a picture
of the future, imagine a boot stamping on a human face—forever.
O desenvolvimento das ideologias políticas inerentes ao
partido – apelidado de “The Party” – são muito bem desenvolvidas e
fundamentadas pelo autor que tem um trabalho exemplar na criação desta
sociedade futurista - futurista na altura (felizmente nada disto aconteceu) -, mas
que poderia ter sido imaginada hoje. O autor chega até a construir uma nova
linguagem - o newspeak - que pretende tornar-se
a língua oficial de Oceania e que consiste na destruição de uma série de
palavras a fim de destruir uma série de conceitos. Desta forma mesmo aqueles que
tiverem pensamentos rebeldes não conseguirão transmiti-los por palavras – é
quase um voltar ao ponto de partida.
É neste tipo de pormenores que a obra de Orwell se eleva à
excelência. Veja-se por exemplo a importância da profissão de Winston. Segundo
o partido quem controla a mente do Homem controla a realidade. Sendo assim, aquilo
em que o Homem acreditar aconteceu e é aqui que entra um factor crucial na
governação do partido, que é o controlo do passado. Se o futuro é escrito pelos
vencedores podemo-nos questionar da veracidade daquilo que nos foi ensinado,
porém, em Oceania este mote é levado ao extremo. O Partido está constantemente
a alterar a documentação referente aos acontecimentos que ocorreram, de forma a
estarem sempre de acordo com as medidas e acções do mesmo, afinal de contas, o
grande líder “Big Brother nunca poderia estar errado. O passado tornou-se assim
maleável e obsoleto.
He who controls the
past controls the future. He who controls the present controls the past.
Claro que é preciso ter sempre em mente que todas estas
acções funcionam porque são utilizadas em conjunto e não separadamente. A
alteração do passado é possível porque ninguém o questiona e aqueles que têm
bases para o fazer rapidamente são excluídos da sociedade. Aqui também exerce um
papel determinante o conceito de doublethink*, termo
criado por Orwell e escrito em newspeak que consiste, por parte do individuo,
na aceitação de dois conceitos contraditórios como estando correctos. Parece
complicado de exercer, porque é complicado de exercer, pelo menos para nós
enquanto livres-pensadores.
Neste sentido nunca é demais reforçar a qualidade
da construção desta sociedade por parte do autor que delineou tão bem o papel
das três classes imutáveis na História – a alta, média e baixa - bem como da
interminável guerra entre as três potências mundiais para a manutenção deste
regime.
Neste ambiente temos a história de Winston (classe média) um
homem que teima em manter o seu espírito livre, insistindo que deve haver mais
na vida do que aquilo que lhe é ensinado. Um homem que tem noção das
consequências das acções do partido e que está disposto a abdicar de tudo para as
impedir. Winston sabe que uma revolução não nascerá da noite para o dia, que é
trabalho de gerações e gerações, contudo, é a própria humanidade, tal como a
conhecemos, que está em perigo de extinção, e esta é uma luta que para ele vale
qualquer sacrifício.
If you can feel that
staying human is worthwhile, even when it can't have any result whatever,
you've beaten them.
As personagens secundárias com que Winston interage, ainda
que poucas – não é suposto haver muita interacção –, são fundamentais para nos
darem diferentes visões das várias pessoas que povoam esta distopia. Atente-se por exemplo no conceito de família, cada vez mais erradicado pelo partido, mas que ironicamente usa a expressão "Big Brother" para apelidar o seu líder.
1984 é um livro que tem tanto de excepcional como de sufocante,
é uma história que mexe com os nossos sentimentos mais primários e que nos
continua a marcar por muito tempo após a sua leitura (são estes os melhores
livros).1984 em uma palavra? Imprescindível.
* para uma definição mais ampla do conceito doublethink coloco
um excerto do livro:
To know and not to know, to be conscious of
complete truthfulness while telling carefully constructed lies, to hold
simultaneously two opinions which cancelled out, knowing them to be
contradictory and believing in both of them, to use logic against logic, to
repudiate morality while laying claim to it, to believe that democracy was
impossible and that the Party was the guardian of democracy, to forget,
whatever it was necessary to forget, then to draw it back into memory again at
the moment when it was needed, and then promptly to forget it again, and above
all, to apply the same process to the process itself – that was the ultimate
subtlety; consciously to induce unconsciousness, and then, once again, to
become unconscious of the act of hypnosis you had just performed. Even to
understand the word 'doublethink' involved the use of doublethink.
9 comentários:
Já lá vai algum tempo desde que "li" (audiobook) o 1984 portanto não te posso onde é mas há uma citação que me fez compreender muito melhor o que era doublethink do que essa. E variantes do doublethink são mais comuns do que dizem, experimenta falar com alguém para quem política é como futebol "o meu clube é melhor que o teu" independentemente dos argumentos que apresentes :P
Ha outra sim, mas se nao estou em erro vem depois. Escolhi esta meramente por surgir primeiro no livro.
Vê se é esta:
The power of holding two contradictory beliefs in one's mind simultaneously, and accepting both of them... To tell deliberate lies while genuinely believing in them, to forget any fact that has become inconvenient, and then, when it becomes necessary again, to draw it back from oblivion for just as long as it is needed, to deny the existence of objective reality and all the while to take account of the reality which one denies – all this is indispensably necessary. Even in using the word doublethink it is necessary to exercise doublethink. For by using the word one admits that one is tampering with reality; by a fresh act of doublethink one erases this knowledge; and so on indefinitely, with the lie always one leap ahead of the truth.
É apenas um complemento não pretendia escrever um texto sobre o conceito de doublethink, isso deixo para descobrirem no livro.
é um grande livro e um excelente filme. referência no século 20 e como ainda hoje se podem ler muitas coisas pelas quais vivemos hoje e/ou podemos vir a ver...
Será que podemos esperar uma comparação com o Brave New World? ;)
Carlos: Sem dúvida. O filme ainda não vi, queria ler primeiro.
Filipe: Sem dúvida que sim, pode é não ser para breve, mas de certeza que o farei. Porque pelo que percebi ambos os autores desenvolvem preocupações distintas sobre o futuro da humanidade. Acho que devem ser obras que se complementam, a confirmar ;)
O que é giro é que este fim-de-semana estive a ler uma BD recente (Fairy Quest) que é altamente influenciada por este livro. Hei-de falar disto também :)
Abraço
Se quiseres continuar nas distopias, não te esqueças de outras três extraordinárias (para além do "Brave New World", já referido): "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury; "A Clockwork Orange", de Anthony Burgess (o filme do Kubrick é extraordinário e muito fiel, mas ainda assim o livro é superior); e "Stand on Zanzibar", de John Brunner. Todas muito diferentes, cada uma formidável e assustadora à sua maneira.
Grande artigo, este. Cheguei a fazer um trabalho académico sobre o "Nineteen Eighty-Four". Tenho de reler o livro um dia destes.
Muito obrigado João especialmente pelas sugestões, não conhecia o "Stand on Zanzibar" de John Brunner.
Falando do filme "A Clockwork Orange", o "Fahrenheit 451" do Truffaut também merece uma menção :)
Com esta conversa apercebo-me que os meus filmes favoritos do Kubrick são de ficção científica (2001 e laranja) nunca me tinha apercebido disso. Claro que a laranja pode ter beneficiado de ter sido o primeiro filme que vi dele, o impacto foi grande, porque na realidade tudo que vi dele é muito bom, desde Barry Lyndon a Eyes Wide Shut, passando por Shinning ou Dr. Strangelove :)
Já agora, se quiseres partilhar o trabalho académico sobre o livro - percebo caso não o querias fazer - eu gostava de ler, não só por questões pessoais, mas até porque ando a planear uma tertúlia sobre este livro, no âmbito de um clube de leitura que formei agora com um grupo de amigos, onde este é o primeiro livro a ser discutido.
abraço
Gostaria muito de o partilhar, mas infelizmente não me é possível fazê-lo - perdi todos os trabalhos académicos quando o disco rígido do meu computador antigo ardeu.
Ainda não vi a adaptação do Fahrenheit 451 do Truffaut - uma lacuna a corrigir em breve. Já do Kubrick... ainda não vi tudo, mas tenho-o como realizador preferido. 2001: A Space Odyssey é o meu filme preferido (geral), mas filmes como A Clockwork Orange, Dr. Strangelove, Barry Lyndon e Full Metal Jacket contam-se entre os meus preferidos.
Bem compreendo a dor, num dia tudo que tínhamos no PC desaparece :S
Nunca vi nada mediano do Kubrick e também elego o 2001 como o seu melhor trabalho. Gosto muito de todos os que mencionas, mais o Shinning e o eyes wide shut. Acho que ainda não vi mais dele, como o seu noir Killing entre outros. A sua importância no cinema é inegável.
Abraço
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