segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Hamlet + Ricardo III

A escrita no blog pode ter diminuído, mas o interesse em conhecer Shakespeare não. Por isso desde que falei no "O Mercador de Veneza" e no "Romeu e Julieta", já acrescentei mais dois à lista de leituras concluídas. "Hamlet" e "Ricardo III" tiveram ainda a particularidade de serem complementados com a visualização das respectivas peças. É que, no final do ano passado - pelo menos -, peças de Shakespeare foi coisa que não faltou na zona de Lisboa: "The Tempest" na ZDB; "Hamlet" no Cornucópia, "Ricardo III" no Dona Maria e "Macbeth"no experimental de Cascais. Um final de ano em grande para quem gosta das peças do Bardo. Os textos que se seguem são apenas alguns apontamentos sobre estas experiências, uma vez que, falar de Shakespeare é matéria para longas conversas.

HAMLET


There is nothing either good or bad, but thinking makes it so.

Considerado por muitos como "a" peça de William Shakespeare, o meu primeiro contacto com ela foi através do filme de Laurence Olivier, uma adaptação muito fiel do texto. Hamlet, o príncipe da Dinamarca, foi uma das personagens mais complexas que li, constantemente em confronto consigo próprio, ao questionar todas as suas acções. Logo no início da peça vai ao encontro do espectro do seu pai para descobrir a maior das traições. Mas seria mesmo o espectro de seu pai? O coração de Hamlet acredita em tudo que lhe foi dito, enquanto a mente teme outro tipo de ilusões. Hamlet consegue reunir um temperamento tempestuoso e uma razão temperada como nunca vi, ele é astuto, perspicaz e até feudal, mas não se entrega à sua vingança tão rapidamente como se poderia esperar a início. A sua inacção está sempre ligada a fortes pensamentos sobre a via mais correcta de agir e por isso é uma das peças mais filosóficas de Shakespeare, com uma sensibilidade profunda sobre a vida humana. Ao contrário da ousada Julieta ("Romeu e Julieta") o interesse amoroso em "Hamlet" - Ophelia - é uma personagem muito mais passiva, cujas acções são sempre em função dos três homens da sua vida (pai, irmão e apaixonado). Muito se tem discutido sobre esta personagem e a sua submissão, no entanto, a dada altura da peça Ophelia rompe todas as suas ligações aos homens da sua vida, quando enlouquece, sendo a protagonista de uma das mais fortes e certeiras cenas da peça. 

A peça no teatro Cornucópia foi encenada por Luís Miguel Cintra e usou a tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen. Uma das particularidades da peça que me captou logo a atenção é de que iria ter uma duração de cerca de quatro horas, ou seja, a peça seria exibida na íntegra. Cintra é da opinião que peças tão longas cada vez mais são encurtadas e poder assistir a um "Hamlet" desta duração é coisa para terminar. A peça seria uma adaptação muito fiel se Cintra não tivesse feito algumas alterações, na maioria das vezes, de cariz humorístico. A adição de um cão, ou de um comentador no combate final são adições que nada acrescentam à peça, sendo talvez uma tentativa de humor fácil numa peça longa e maçuda? De qualquer das formas resulta mal ou porque tem pouca graça ou porque há momentos em "Hamlet" que não são para rir. Além disso o humor nunca foi estranho a Shakespeare e "Hamlet" tem alguns momentos bem humorísticos tanto na personagem de Polónio, como no cinismo do próprio príncipe da Dinamarca ou no hilariante coveiro. De resto a peça segue o texto de forma fiel e numa linha muito clássica, com uma jovem promessa a vestir a pele de Hamlet de uma forma vigorosa. Um papel nada fácil que Guilherme Gomes consegue cumprir admiravelmente. A destacar também as prestações de Teresa Gafeira e Duarte Guimãres como Gertrudes e Polónio, respectivamente.


RICARDO III



Now is the winter of our discontent.

Aqui o esquema foi ao contrário. Quando tive conhecimento de que Ricardo III ia ser exibido no Dona Maria, não hesitei. Marcou-se desta forma o meu primeiro contacto com as peças históricas do Bardo, um contacto pungente graças a esta encenação contemporânea de Tónan Quito. Numa primeira impressão o palco chama logo a atenção pelo facto de estar tão despido de adereços e todo ele coberto de alcatrão. Alcatrão esse que é, ao longo da peça, constantemente remexido por pás (talvez a evocar o facto de o corpo do antigo Rei inglês ter sido descoberto há um par de anos). O maior destaque desta encenação, contudo, tem de ir para a representação de Ricardo III a quem todo o elenco dá corpo e alma, pelo menos uma vez. Para esta estratégia resultar faz-se uso da sua suposta corcunda e de uma bola vermelha que palpita por todo o palco. Aquele a quem a bola for colocada nas costas passa a ser automaticamente Ricardo III - todos são Ricardo e todos nós podemos vir a ser Ricardo! Uma prestação maravilhosa de um elenco fantástico no qual destaco os Ricardo's do bailarino Romeu Runa e de Tónan Quito. Para quem não tem grandes conhecimentos desta fase da História de Inglaterra é um pouco difícil entrar na peça ao início, até eventualmente tudo começar a fluir melhor. Uma palavra de apreço também para os músicos (que também representaram) e ao seu Jazz que tão bem encaixou no espírito da peça.

Quando peguei no livro já tinha um contacto mais próximo com a história - afinal isto foi escrito para o povo inglês - e sentia-me mais confortável a reconhecer todas as personagens que surgiam em cena. Pode parecer estranho querer ler a mesma história mal se sai da representação da mesma, mas "Ricardo III" é assim tão poderoso. A personagem é uma das grandes maquiavélicas da História e a sua sede de poder pelo trono não encontra nunca restrições. Não admira que tantas vezes o trabalho de George R.R. Martin seja acusado de beber influência das peças de Shakespeare. Seja na tragédia, na guerra pelo trono ou no enorme detalhe dado às personagens, as comparações fazem todo o sentido. Novamente, existem um sem número de cenas fortíssimas, tais como o sonho do duque de Clarence ou a previsão (de tudo o que vai acontecer) da antiga rainha Margarida. Mas a peça é de Ricardo e tanto o seu início - em que se auto-intitula como vilão - como o seu fim - aquela primeira vez em que se confronta com os seus próprios pecados - esboçam um circulo soberbo naquilo que foi a possível vida de Ricardo III (é importante lembrar que a linhagem Tudor também se esforçou por manchar ainda mais a imagem deste Rei, o único a morrer em batalha em terras inglesas). Não admira, por toda a intensidade que esta seja uma das peças mais encenadas de William Shakespeare.

Sem comentários: