sexta-feira, dezembro 21, 2012

Guerra e Paz


"Os mais fortes de todos os guerreiros são estes dois — Tempo e Paciência."

Diz Kutúzov, a dada altura, enquanto comandante-em-chefe do exército Russo. Tempo e paciência foram guerreiros formidáveis neste confronto, algo que Kutúzov sabia bem, mas que, na altura, não lhe foi devidamente reconhecido. Podia dizer que foi graças a isto que a Rússia expulsou a França das suas fronteiras, mas estaria a cair no mesmo erro dos historiadores criticados por Tolstói. Há uma série de causas que geram uma série de efeitos, e nunca vi uma análise tão detalhada e pensativa sobre este assunto como nesta obra, mas vamos por partes.

O que é "Guerra e Paz"? Um romance? Um épico, por excelência? ou uma crónica histórica? A resposta não é nenhuma, mas antes todas. A resposta encontra-se na união dos géneros mencionados (e ainda há outro), que juntos resultaram em uma das peças da literatura mais grandiosas que alguma vez li. Uma afirmação que ganha mais força (ou perde), quantos mais livros se lêem e aqui ao ser proferida por mim não lhe faz a devida justiça, o tempo mo dirá. O termo grandioso não é escolhido ao acaso, aparte do óbvio tamanho,"Guerra e Paz" é-o em todos os sentidos que a palavra "grandioso" pode assumir - quando falamos de literatura. Ora vejamos:


  1. Neste livro Tolstói conta-nos a história do povo Russo durante as invasões napoleónicas, alternando entre a vida na sociedade aristocrática e a vida durante as várias campanhas de guerra. Na edição da Presença (dividida em 4 volumes), salientam que Paz não foi a escolha mais correcta em termos de tradução, que sociedade assentaria melhor, mas nunca encontrei nada que corroborasse esta afirmação, até porque Tolstói se baseou no título "La Guerre et la Paix" de Pierre-Joseph Proudhon. De qualquer das maneiras, hoje, seria sempre difícil imaginar outro título que não este.

    O autor criou personagens fictícias para romancear esta história, utilizando cinco famílias aristocráticas (os Bezukhovs, os Bolkonskys, os Drubetskoys, os Kuragins e os Rostovs) para nos descrever a vida na Rússia durante os tempos de 1805-1813. É a partir delas que temos uma visão ampla e consistente da vida daquela sociedade durante esta época de grande tensão militar. São muitos anos aqueles em que acompanhamos estas personagens, em que assistimos ao seu crescimento, conhecendo aquilo que temeram e enfrentaram, ou o que amaram e protegeram. No final, não são as mesmas personagens que conhecemos no início, e toda esta construção de personalidade é feita de forma sublime.
  2. Por outro lado, o autor também elaborou uma severa pesquisa sobre a época para retratar o melhor possível os acontecimentos. O autor recorreu a vários livros de história, filosofia, e a vários documentos da altura, tais como entrevistas. Várias personagens do livro foram personalidades históricas e o cuidado que o autor teve nos seus discursos é notável e impressionante."Guerra e Paz" é portanto um grande trabalho tanto a nível de ficção como também, documental e onde a linha que separa estes dois géneros se torna mais ténue do que nunca.
  3. Na altura em que foi escrito, Tolstói quebrou as regras da literatura, como só os génios o souberam fazer. Enquanto narrador, tanto nos conta a histórias destas personagens, como se dirige a nós a fim de abordar o significado destes acontecimentos, procurando razões e justificações para os mesmos.

    Tolstói faz uma aprofundada reflexão sobre a história enquanto disciplina e desmistifica por completo o mito de Napoleão, ou antes, o mito do herói genial e causador dos eventos. É o homem que faz a história ou a história que faz o homem? Essa eterna questão ainda hoje discutida e que encontra aqui um dos temas mais controversos na obra do autor.

    Uma coisa parece certa, Tolstói foi pioneiro no que toca à análise histórica também. A fim de justificar a sua ideia de provar o caminho errado que seguiam os vários tipos de historiadores na altura, o autor recorre muitas vezes a comparações com outro tipo de ciências que nada têm a ver com a abordagem da história, mas cujos paralelismos têm lógica.

    Nas palavras do próprio a melhor literatura russa não se conforma às regras convencionais. E agora podemos ainda acrescentar o género filosófico aos mencionados acima, porque "Guerra e Paz" é também uma profunda reflexão sobre o Homem e sobre o seu conceito de libertade vs necessidade: "(...) é indispensável, do mesmo modo, renunciar à liberdade de que temos consciência e admitir a dependência que não sentimos."
  4. Por fim, mas não por isso menos importante, temos a qualidade da escrita. Não temos grande literatura se não tivermos um grande escritor, podemos ter grandes histórias, mas não é só a história que faz o livro, a forma como se a conta também.

    Gostei particularmente do seu uso da metáfora, desde a comparação do funcionamento de um exército, ao funcionamento de um relógio; passando pela comparação do funcionamento de Moscovo, com o funcionamento de uma colmeia. As suas escolhas sempre certeiras e tão bem descritas.

    Tolstói tem também uma escrita muito visual, arrisco-me a dizer, que em determinados momentos, é cinematográfica. As personagens, como já referi, são extremamente bem construídas e chegam a ser tão reais que quase lhes conseguimos tocar. Se "The Wire" foi a série mais realista que vi em termos policiais, este foi o romance -e chamar-lhe isto é ficar aquém - com o mais forte realismo que li sobre uma época histórica. Os raciocínios do autor, quando o narrador assume um papel ainda mais "divino", são também muito bem expostos e desenvolvidos, é como se a dada altura fizéssemos uma pausa na história para discutir os assuntos. Nunca li nada assim.
"Guerra e Paz" é em todo o sentido da palavra, uma obra ímpar, digo até uma obra-prima. O jornalista Isaak Babel disse que "se o mundo escrevesse por si próprio, escreveria como Tostói".


E se o mundo realmente terminasse hoje, não só ficaria contente por ter terminado o livro a tempo, como também por o meu último post recair sobre a obra de um daqueles que é considerado um nome maior da literatura - e que começo a compreender porquê - Lev Tolstói.

Sem comentários: