Estava mais do que na hora de entrar nas peças de William Shakespeare (entenda-se entrar por começar a lê-las). Para primeiro livro deste autor aconselharam-me "O Mercador de Veneza", o que me parece ter sido uma excelente sugestão para começar. É uma peça simples e muito divertida. Curiosamente, acabei por começar por uma das mais polémicas de Shakespeare, uma vez que é acusada de anti-semitismo por causa da forma como a personagem Shylock, o vilão, é abordada.
Se calhar convém contextualizar este tipo de obras, "O Mercador de Veneza" foi escrito entre 1596 e 1598 e segundo os historiadores é um retrato fiel dos costumes, esterótipos e preconceitos da altura. Fosse em Inglaterra ou em Itália, o preconceito para com os judeus era real. Aliás o retrato de Shylock por Shakespeare é tudo menos orginal, já existindo uma série de personagens "tipo" como esta em obras mais antigas.
SPOILERS
Shylock é um judeu rico que explora outros a partir dos juros que aplica nos seus empréstimos. No início deste livro, António, o homem que dá título à peça, recorre aos seus serviços para poder dar dinheiro a um grande amigo seu, Bassânio. Como Shylock despreza António, sentido-se humilhado pela forma como este o tem vindo a tratar, arranja forma de criar um contrato em que António terá de pagar com um pedaço da sua própria carne, caso não devolva o dinheiro no prazo acordado. O livro foca-se muito no quanto Shylock não é capaz de mostrar mesericórdia perdoando a dívida de carne.
Quais as verdadeiras intenções do autor ao retratar Shylock desta forma tão cruel é que se mantêm uma incógnita. Seria Shakespeare um filho do seu tempo e, devido ao contexto em que foi criado, acreditava que os cristãos eram mais dotados de compaixão? É a conversão de Shylock no final, a sua tentativa de final feliz? Ou, por outro lado, aproveita Shakespeare esta generalização do povo judaico para mostrar o quanto somos todos, enquanto Homens, iguais? Depois de nos apresentar uma personagem odiosa como Shylock, no final do livro Shakespeare escreve-lhe um dos discursos mais poderosos de toda a peça, quando este compara os judeus aos cristão, mostrando que todos sangramos, todos comemos e todos sentimos o mesmo, culimando no facto de os cristãos também se vingarem daqueles que lhes querem mal.Shylock vai mais longe dizendo ainda que a vilania da vingança foi-lhe ensinada pelos próprios cristãos.
Nunca vamos ter uma prova definitiva sobre as intenções de Shakespeare, se realmente ele queria provar um ponto maior ou apenas criar uma simples comédia. Prefiro a ideia de uma visão mais profunda, claro. Acho que o poder desse discurso de Shylock faz-se sentir e que é muito possível que Shakespeare quisesse instruir melhor o povo que assistia às suas peças, fazendo-os questionar o estado das coisas. Ou então pode ser, simplesmente, um filho do seu tempo, como a maioria de nós é.
If you prick us, do we not bleed? if you tickle us, do we not laugh? if you poison us, do we not die? and if you wrong us, shall we not revenge?
Algo do qual esta obra não beneficiou foi do facto de ter sido usada como propaganda no regime nazi, em particular a personagem Shylock. A associação ao governo de Hitler é um daqueles tipos de sugidade que mancham algo para a vida.
Mas "O Mercador de Veneza" tem vida além de Shylock, pois também na história de Portia, Shakeaspere cria uma personagem feminina fortíssima, sendo a mais perspicaz de toda a obra. Adorei a ideia dos três cofres diferentes, cada um com uma mensagem e onde num deles se encontra guardada a imagem de Portia, correspondendo à sua mão em casamento, caso alguém o escolha. Portia é uma personagem encontadora e que demonstra possuir uma grande consciência da sua realidade. Quando aquele que ama vai tentar a sua sorte ao escolher um dos cofres, Portia tenta atrasá-lo, a fim de aproveitar mais tempo na sua companhia, uma vez que se errar na escolha este é forçado a abandonar o seu castelo imediatamente. No final é quem acaba por salvar o mercador de Veneza (António) onde todos os outros falharam ao tentar.
Também me parece que Shakespeare retrata nesta obra a paixão homosexual de António pelo seu grande amigo Bassânio (que casa com Portia). Nota-se uma grande intimidade entre os dois e a minha leitura leva-me a crer que é algo propositado. Claro que Shakespeare não pode explorar isto de forma directa, estamos em pleno século XVI, afinal de contas. Os tempos eram outros.
Por fim, é de salientar não só a mestria da escrita de Shakespeare, mas também o seu enorme conhecimento da situação que se vivia em Veneza, criando um retrato fidedigno da altura. Uma palavra de apreço ao tradutor desta edição da "Lello" que tem uma secção de notas muito boa e cujo nome acrescentarei aqui, quando voltar a ter o livro nas mãos.